10 de outubro de 2012

Indicação bibliográfica - Prof.a Dra. Tania Montoro

MONTORO, Tania. " Velhice e Envelhecimentos: Dispersas Memórias na Cinematografia mundial" In. Maria Luisa Mendonça(org.) Midia e Diversidade. Ed. Casa das Musas, dez 2009.


 
Velhices e envelhecimentos: 
Dispersas memórias na cinematografia mundial


                                                             Tânia Siqueira Montoro [1]



         1.Velhice e memória no cinema:

         São de diferentes gêneros e nacionalidades filmes que geram imagens dos velhos, de seus processos de envelhecimento e de suas mortes. Estes filmes identificam as dores e infortúnios dos idosos, mas também seus amores, seus desejos, suas escolhas, seus sonhos revelando-se como material empírico de valor para observação e critica nos estudos da comunicação audiovisual especialmente, em sua interface com estudos de gênero.  
      Consideramos envelhecimento todos os processos de alterações que envolvem os indivíduos no decorrer da vida. Longevidade é a capacidade de vivenciar, de melhor forma e por mais tempo, os processos de envelhecimento. Debruça-se, este estudo, sobre os processos de produção de sentidos e significações na complexa relação entre cinema e formas de representação social  da diversidade, isolando as  temáticas  da  representação da velhice  e dos processos de envelhecimento para substanciar a análise dos filmes selecionados.
        Para Jodelet (2001) [2] os estudos da representação social remetem a uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. As representações orientam e conduzem as condutas e as comunicações sociais e interpessoais. Da mesma forma, intervem em processos de difusão e assimilação de conhecimentos, o desenvolvimento individual e o coletivo, a definição de identidades pessoais e sociais, a expressão de grupos e as transformações sociais.
     Na linguagem cinematográfica a representação está organizada em um núcleo central. Esse é o elemento fundante da representação, uma vez que determina a significação e organização que ela possui. A teoria das representações sociais interessa, por várias razões, a área de comunicação audiovisual e conforme sublinha Almeida(2005)[3] “os diferentes meios permitem que as representações transitem em distintos espaços , assumindo significados e funções diferenciadas , o que contribui para sua própria transformação” Destaca, a pesquisadora,  quatro níveis de análise para os estudos da representação na analise cultural contemporânea. .
 O primeiro focaliza os processos intra-individuais e analisa o modo como às pessoas organizam suas experiências com o meio ambiente. O segundo centra-se em processos inter – individuais e situacionais, ao buscar em sistemas de interação os princípios explicativos típicos de dinâmicas sociais. O terceiro leva em conta as diferentes posições que as pessoas ocupam em relações sociais e analisa como essas posições modulam os processos do primeiro e segundo níveis. O quarto enfoca os sistemas de crenças, representações, avaliações e normas sociais. Desta forma, a autora, compreende os processos de representação como princípios gerados por tomadas de posição, ligados às inserções sociais especificas que organizam os processos simbólicos que interferem nas relações sociais.
     
    A imagem do velho e da velhice se edifica nas relações sociais e culturais de cada sociedade e grupo e, sofre mudanças, ao longo do tempo. Essa imagem é resultante, muitas vezes, da rejeição de algo não desejado, que deixa de ser apenas a morte e passa a ser o próprio estado de velhice e envelhecimento.  A titulo de exemplo focamos a adaptação filmica  do clássico de Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray (1945) em que  envelhecer é difícil, exige cuidados, conforma processos de insegurança e dependência. Outros filmes maculam esta dificuldade de produzir sentidos a experiência de vida,  que é envelhecer e morrer.  Pois, se a natureza nos conduz para um lado, relembrando seus ciclos, a cultura visual nos oferece um outro, impondo-nos um modelo único de beleza, geralmente associado com o vigor da juventude.
 Este modelo vem traduzido num eterno aperfeiçoar-se,  para parecer cada dia mais novo, e assim  aumentar a capacidade de  sedução/identificação/ aceitação do corpo, tomado como elemento de valorização de um  modelo veiculado e revelado no domínio de novas tecnologias de gênero ( no sentido dado por Laurentis)[4] que vão de  cirurgias plásticas a  processos de mudança de cor( bronzeamentos, branqueamentos) e  mudança de sexo, processos transformadores  que passam a ser acessíveis para  uma massa de consumidores/ público/ telespectadores contribuindo para que cada vez, no mundo todo, pessoas mais jovens( fenômeno observado no mundo ocidental ) busquem intervenções cirúrgicas de natureza exclusivamente estética.
    Trata-se, portanto do mundo das aparências, revelação identitária conduzida por uma  imagem reveladora de um corpo sempre em mutação como condição única de verdade e realidade e ainda, de negação do tempo vivido.

      Ao longo da cinematografia a representação da velhice se consagrou  por memoráveis personagens que figuram como protagonistas de cenas hilárias e consagradas na memória do audiovisual. Para acompanhar a reflexão valho-me de alguns exemplos da cinematografia para pinçar fragmentos que conformam figurações dos processos de envelhecimento tentando apontar as formas de representação que circulam na narrativa filmica.
  Num esforço de memória apontamos alguns filmes que marcaram seus enredos, tramas e personagens com formas de representação da maturidade como em  Morangos Silvestres ( Bergman,:1957) em que .um professor de medicina , de 78 anos, a caminho da Universidade de Lund, onde receberá um premio por sua contribuição cientifica, revela uma imagem inesquecível, que é aquela que mostra um velho, sábio,que purga uma vida inteira sem amor.
 Em Morte em Veneza (Viscondi:1971) os velhos envergam maquiagens e máscaras de juventude que se desfazem ao mesmo tempo da decadência veneziana pelo surto da cólera, ambiente que contribui para que os jovens desprezassem o futuro( a velhice) . Encontramos como lapidar o discurso sobre a representação da velhice: “ ... não há em todo mundo impureza tão impura quanto a velhice”entoada por um dos principais protagonistas dessa película.
      Em Ensina-me a Viver ( Hal Ashby,1972), o cinema americano inaugura uma nova forma de representação da velhice, naquele momento, em que  a geração Easy Rider envelhecia, o filme tornou-se um ícone da cinematografia dedicada a temática inaugurando um discurso provocador e irônico,  ao colocar um jovem de 20 anos( Harold), pedindo em casamento uma senhora de 79 (Maude). A senhora estabelece uma relação profunda, complexa e duradoura com aquele jovem obcecado pela morte, e que passou boa parte de sua vida indo a funerais ou simulando suicídios. Este jovem encontra-se casualmente com a velhice que esbanja vivacidade e por meio dos sentidos que dá ao cotidiano, expõe a beleza da vida. Este diálogo entre vida e morte , tragédia e comicidade,  desperta no público uma sensibilidade para vivenciar , uma tocante história de relações interpessoais , que nos faz refletir sobre o sentido da vida e não da morte ... Inaugura, este filme outro olhar sobre as relações de gênero e formas de sedução feminina.
    No magnífico Cinema Paradiso ( Giuseppe Tornatore, 1989)  uma obra prima de ode ao cinema e à vida, observamos que o centro representacional da trama narrativa recai sobre a amizade de um garoto, e um amadurecido projetista de cinema( Alfredo) no interior da Itália. Utilizando de uma linguagem simbólica e poética, o filme nos conduz  a mergulhar na memória da sétima arte, esmiuçando as transações constantes entre presente e passado e passado e futuro, que fundamentam toda a complexa relação entre espaço e tempo na linguagem cinematográfica.
       Ainda, o diretor italiano Tornatore no filme Estamos todos bem (1988) orienta o olhar do público, do espectador sobre a representação da velhice, sublinhando a  dificuldade que a sociedade ocidental tem em lidar com a morte,especialmente quando se trata de alguém que não atingiu a velhice. O personagem do solitário  Matteo ( vivido por Marcelo Mastroianni) que busca a companhia de seus filhos é interpelado pela dureza das fatalidades que acometem a vida da família. Em determinado momento aquele pai, viúvo e solitário imprime sentido ao cotidiano e aprende com as pessoas, que às vezes  “...é melhor fingir que não houve nada , não entender e não procurar esclarecimentos”. Em seu livro O Cotidiano e a História a filósofa Agnes Heller observa que:
             ... a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se  em funcionamento todos os seus sentidos , todas as suas capacidades intelectuais , suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias e ideologias. O fato de que todas as capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se , nem de longe, em toda sua intensidade. O amadurecimento do homem significa socialmente que o individuo adquiriu todas as habilidades imprescindíveis para vida cotidiana da sociedade. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade. ..(Heller1989:18).  

            E é no cotidiano de uma pequena cidade européia, hipócrita e conservadora que o filme A excêntrica família de Antônia,( Marleen Gorris -1995) que o espectador é levado ao passado para acompanhar a vida da matriarca Antonia, narrada por sua bisneta. Na família de Antonia, o amor não tem barreiras, é livre, surge para todos e aparece sob várias formas. Neste cotidiano a matriarca executa a justiça pelas próprias mãos, seja para defender seu circulo afetivo ou qualquer um que precise dela e não tenha a quem recorrer. Antonia é apresentada como alguém à frente do seu tempo, construtora de um lar cheio de vias e sobreviventes em meio aos destroços de uma existência sem objetivos. O argumento do filme trata da existência ( o viver cotidiano) como um exercício de estoicismo: deve-se preservar nas escolhas, o que somos a despeito das adversidades. Não se pode conseguir tudo, mas, se preservarmos nossa essência, consegue-se o necessário. E quando a morte chega parte-se com coração tranqüilo, ficam apenas saudades e memórias revisitadas como recordações.

     O cotidiano também representa o núcleo central da trama narrativa filmica em Conduzindo Miss Daisy ( Bruce Beresford,1989) que relata a vida de uma rica judia de 72 anos, que depois de um acidente de carro, é obrigada pelo filho a conviver com um motorista negro contratado por ele. Inaugura-se aí uma grande amizade que durarã  vinte anos de cumplicidade e companheirismo. Este filme construído sobre relações de classe, gênero e raça conferiu a atriz, Jéssica Tandy , a época com 80 anos, o Oscar por sua atuação, entrando na história como a interprete mais velha a ganhar uma estatueta na categoria
      O mais velho cineasta em atividade, o diretor Manoel de Oliveira tinha mais de 90 anos quando realizou Vou para casa (Portugal:2001). O filme narra a história de um ator de teatro que tem uma carreira de sucesso. Ele vive a tragédia com a morte de sua mulher, filha e genro, em um acidente. O tempo passa e a vida volta ao dia a dia, a normalidade do cotidiano. Gilbert compartilha sua cotidianidade com seu neto e se recusa a fazer qualquer coisa só por dinheiro. Lança-se a encenar Ulisses de Joyce. No dia da estréia da peça, o ator mostra as falhas na memória esquecendo o texto que havia estudado por tantos meses. Então, calmamente, pára e claramente diz: “Vou para casa” resignando-se frente aos fatos, a realidade do envelhecimento, as limitações da vida e da arte frente a circunstancias da realidade.
     Amizades de velhos e crianças acrescem a cinematografia sobre a temática. Em Confissões de Schmidt ( Alexander Payne, 2002)que magnificamente retrata a complexa e profunda relação de Scmidt, que aos 66 anos, com dificuldades para se adaptar a nova vida de aposentado, até que algo lhe aproxima da vida, quando resolve adotar o menino Ngubu, que vive na Tanzânia. O discurso fílmico é mediado por um conjunto de cartas trocadas entre os personagens, que comparecem a narrativa imagética, como pessoas comuns que falam do envelhecimento, da solidão e da morte com simplicidade convocando a imortalidade dos bons momentos da vida!
      Na cinematografia oriental a relação entre mentalidade e realidade inscreve-se com altivez na representação da velhice e dos processos de envelhecimento. A tradição é conclamada para explicitar os valores que fundamentam a morte na cultura oriental.
 No inesquecível A Balada de Narayama (Shohei Imamura, 1983), filme clássico da etnografia mundial, em que em uma pequena aldeia no norte do Japão, uma senhora de 70 anos, que apresenta uma vitalidade invejável, é levada a montanha de Narayama, que era habitada por um Deus que orientava o  tradicional ritual da passagem da vida para morte, sendo esta forma de morrer considerada por aquela comunidade no norte do Japão, mais digna do que a provocada por uma doença. O filme retrata também o sofrimento de Orin, em aceitar a tradição desta forma de morte, para sua mãe, em um conflito entre tempo cultural e tempo biológico. 
     No enigmático Rapsódia de agosto ( Kurosawa:1991)  o diretor singulariza a mentalidade oriental de cultuar a sabedoria dos velhos. A avó protagonista central - nas cenas finais - corre sob a chuva com dificuldade de segurar as reviradas de um guarda chuva  atingido pela passagem de um tufão. Atrás dela correm os filhos e netos. Para Assunção ( 2007) [5] “ o diretor, nesta cena, coloca a necessidade de manter viva a memória do passado,ao mesmo tempo, em que não se perca a urgência de seguir adiante não importa contra o quê?”
   Em Mandadayo ,do mesmo diretor, (1993) um professor que se aposenta sofre imensamente com a perda de um gato de estimação. Depois de  algum tempo resolve substituí-lo por um “gato qualquer”.  A linha dramática do filme encaminha-se para uma lição de vida mostrando que tudo é substituível e que, os pequenos afetos são os alimentos da existência em qualquer plano. O filme é de uma sutileza exemplar e um libelo de consagração da sabedoria de aprender a ser e viver só.
A representação da velhice na cinematografia oriental salpica o filme A touch of Spice do grego Tassos Boulmetis ou o Tempero da Vida (1992) em que a relação entre um avô( filosofo e mentor) introduz o neto, que cresceu em Istambul , nos segredos da gastronomia ensinando que tanto a comida como a vida requerem um pouquinho de sal para adicionar-lhes sabor e emoção. Por meio da culinária árabe o avô rememora a vida cotidiana da família, os mitos, ilusões, o viver no exílio mesclando ingredientes do cinema poesia de Pasolini, conforme argumenta Brayner:.

       Para Pasolini, a realidade da maneira que se apresenta ao olho humano era um modo de comunicação, da mesma forma que o cinema. No decorrer de suas investigações intelectual ele propôs como estas duas instâncias poderiam interagir, resultando em uma forma inédita de olhar e perceber a realidade. Sua contribuição decisiva seria orientar este discurso no sentido de originar uma práxis cultural. Seu conceito distinto de realidade se configura na prática social, especialmente no que se refere às realidades que não estão inseridas aos padrões de consumo emergentes daquela época. Desta maneira temos que a realidade para Pasolini está intrinsecamente associada ao processo de formação e compreensão da imagem. O real pasoliniano é o seu signo. O cinema do autor – cineasta escreve a realidade, é escritura  de poesia( Brayner2008:90)[6].     

    No Brasil a diretora Carla Camurati, em 2001, realiza o filme Copacabana em metáfora ao populoso bairro, de muitos aposentados, da zona sul do Rio de Janeiro. O filme gira em torno da morte do personagem Alberto perto de completar 90 anos.
Com uma imagem bem humorada da morte na velhice, o filme, retrata também o inconformismo destilado pelo comentário dos amigos, recheando o imaginário do espectador do “mito do eterno retorno”, acionado quando Alberto levanta-se do caixão, assustando e alegrando, ao mesmo tempo, as pessoas do velório. A narrativa filmica encaminha-se para um reencontro de imaginários e memórias  de um inesgotável sentimento de brincar com a morte ao respeitar a vida.
 Ainda do promissor  cinema brasileiro contemporâneo os filmes Central do Brasil , A casa de Alice e Do outro lado da Rua  observamos uma mudança substantiva quanto a representação da velhice e dos processos de envelhecimento na construção das personagens centrais -  uma solitária  professora que escreve cartas na central do Brasil no Rio de Janeiro ; uma avó e dona de casa  que é o esteio tanto financeiro como emocional de toda uma família e, uma solitária aposentada que passa a viver a vida olhando e confiscando a vida de um homem(recém viúvo) do outro lado da sua rua.
     O cinema brasileiro atual vem trazendo outros olhares para os processos de maturidade e envelhecimentos para a tela do cinema tanto no premiado Chega de Saudades de Lais Bodansky( 2007)  como o delicado  Depois daquele baile de Roberto Bomtempo, 2006. Ambos apresentam inovadoras significações imprimindo um olhar singular e desafiador para as relações amorosas, que se estabelecem nos processos de corpo, amadurecimento e sedução. O primeiro retrata as casas de baile de São Paulo, lócus desconhecido da modernidade, mas que até hoje se estabelece como pólo de  vivências e convivências  para seus assíduos freqüentadores O segundo com exemplar atuação, da atriz e feminista, Irene Ravache, contabilizando desempenho na cozinha ( no filme ela é uma magnífica quituteira mineira ), ou nos espaços simbólicos de quem ainda vive ilusão e sonhos em romances de verão. 
      Observa-se, ao longo da cinematografia, que os filmes tem sido um importante interlocutor deste diálogo entre imagem e representação, promovendo a oportunidade  de circular outros sentidos  para o repertorio imagético que ancora as formas de representação da velhice  e  do envelhecimento/morte .Destaca-se especialmente, as configurações burlescas que a representação da mulher madura vem encontrando nas ultimas décadas. Já podemos agora conviver e fruir de novas imagens do corpo e do prazer feminino ainda, que este domínio, se realize dentro de um “gaze eyes masculino” em que a trajetória do olhar sob o quadro cinematográfico advem de um ponto de vista masculino (configuração e dependência da felicidade e prazer feminino atrelada à capacidade de sedução do olhar masculino).



 Realismo, poesia e ilusão: Elsa e Fred um amor de paixão. 

   Nos últimos anos, essa expressão visual de novas polaridades identitárias sobre amadurecimento e processos de envelhecimento, impactou sobre maneira, as formas de representação da mulher madura. Novos protagonismos sociais emergem orientando um olhar mais plural e multifacetado para o processo de envelhecimento feminino.
Le Goff[7](1976:98) chama atenção para o uso cientifico do documento fílmico, seja ele de ficção ou documental para análise cultural apontando que o filme...” não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder”. Para o autor, estes novos objetos de análise passam a ser encarados como fontes preciosas para compreensão dos comportamentos, visões de mundo, dos valores e das ideologias de uma sociedade ou de uma determinada época.
Alarga-se assim, o espectro de possibilidades de todo e qualquer filme constituir-se em objeto de conhecimento que ganha densidade metodológica com as análises filmicas empreendidas por Marc Ferro[8]. Em suas investigações o pesquisador sublinha as condições de produção, circulação e recepção das imagens que fomentam conteúdos para uma crítica autentica da complexa relação entre cinema e história da cultura. Nas análises sobre conteúdos dos filmes ( tema , fatos históricos e personagens cotidianos)  ele destaca a importância do analista decodificar o conjunto de imagens e sons em circulação, os diálogos presentes, os elementos persuasivos de que lançam mãos os personagens, para se construírem em cena, e as intensidades de ações que  imprimem determinadas estilos e modos de vida.

            Para o estudo das configurações da experiência estética e visual na representação filmica - de gênero -  na cinematografia contemporânea, valho-me da contextualização  da  mutante experiência histórica de ser e estar mulher nos espaços sociomediaticos que movem as formas de representação social na contemporaneidade . O cinema assim é visto como experiência de desejo utópico e não restrito a ilusão do movimento, mas proporcionando modos de ver e conhecer a realidade. Esta realidade está mediada por outras tecnologias que impactam substantivamente o corpo feminino, as formas reprodutivas que oferecem outros modos de periodicizar a vida e definir as práticas relacionadas a cada período. A mulher pode ou não ser mãe aos quarenta ou aos cinqüenta anos. Outra mudança substantiva emerge no desenho da unidade familiar cada vez mais, especialmente nos grandes centros, consagrando  a mulher como chefe de família. A longevidade não é acompanhada de multiplicação da prole. Assiste-se a cada dia, uma redução substantiva no número de filhos e um aumento progressivo da expectativa de vida. A cronologização da vida, na modernidade, mostra que o processo de agrupar pessoas em função da geração é totalmente distinto de fato de agrupar pessoas em função do estágio de maturidade. De acordo com Kohli e Meyer “...trata-se de chamar a atenção para o fato de que o processo de individuação, próprio da modernidade, teve na institucionalização do curso de vida uma de suas dimensões fundamentais. Uma forma de vida em que a idade cronológica era praticamente irrelevante foi suplantada por outra, em que a idade é uma dimensão fundamental na organização da vida social” (1986:45)[9]. Deriva daí a observação de que o fato de a idade cronológica não estar ligada a um aparato que domine a reflexão sobre os estágios da maturidade  demonstra também, a flexibilidade  desse mecanismo no que diz respeito a criação de novas etapas e redefinições de modelos simbólicos.

          Produto de uma parceria entre Argentina e Espanha, com apoio da Televisão Espanhola, o filme Elsa e Fred Um amor de paixão, comédia romântica com excelente aceitação do público e da critica foi tomada para análise da representação dos processos de velhice e amadurecimento no cinema contemporâneo.  A trama central move-se a partir de duas narrativas polarizadas sobre a velhice e os processos de envelhecimento. De um lado, a personagem da faceira Elsa, uma senhora de idade, mãe de dois filhos, avó, vizinha de Fred que passa a ser novo inquilino de um edifício médio de Madri. Fred um viúvo vem morar no edifício porque terminou de perder sua mulher e fica com seu cachorro Bonaparte, vivendo de remédios e suportando seu cotidiano solitário, somente interrompido pelos rompantes da filha, genro e neto. Esse cotidiano é arrombado quando, logo nas cenas iniciais, Elsa conhece Fred – Alfredo (Manuel Alexandre) por causa de uma atrapalhada. Ela bate na traseira do carro da filha de Fred frente aos olhos assustados do seu neto e, por isso, o ameaça de morte caso comente alguma coisa.
A assustadora ameaça não surte efeito, causando certo escândalo quanto à cobrança do conserto do carro da filha daquele novo vizinho. Alfredo (Fred) é um tanto hipocondríaco. Mas Elsa, que estava incumbida – muito à contra gosto – de entregar o cheque para sanar as despesas decorrentes do pequeno acidente/ incidente, mudará o cotidiano desse velhinho. O diretor assinala o desfecho da narrativa com o seguinte fragmento: Fred entreolha o apto da vizinha e se depara com uma enorme foto de Anita Ekberg no filme La Dolce Vita , de Fellini, vencedor de Palma de Ouro de Cannes em 1960. E é precisamente aqui que o diretor assinala o encontro amoroso dos vizinhos. O filme de Fellini serve como espaço de mediação entre a memória audiovisual e memórias da vida daquela senhora – Elsa. Ela coopta o olhar do público, não mais pelos dotes físicos que exibira na juventude, que pudera a fazer sonhar ser atriz como a Anita  do filme de Fellini.  Ela seduz o público por impor outro movimento de significações ao amor romântico - um olhar advindo da ilusão cinematográfica, um olhar pontuado por desafios e, que pelo mecanismo da inversão, da suspensão, da fruição e identificação que compraz uma senhora faceira que enfrenta uma doença terminal e ainda, assim tem muito humor e sonha em ter um grande amor para com ele mergulhar no universo imaginário da  Fontana de Trevi, em experiência mimética que proporciona o  premiado filme felliniano.  Com este posicionamento metalingüístico, a personagem abre-se ao público não mais como uma encrenqueira e confusa senhora de meia idade, ela invade para inverter o nosso olhar e apontar esta cegueira em que mergulha nosso cotidiano. A personagem anuncia novas temporalidades e identidades para abrigar a ilusão deste fragmento fílmico. 

       O filme Elsa e Fred do diretor argentino Marcos Carnevale é generosamente narrado como poesia do cotidiano, em que a compreensão e desejo humano fazem aflorar nobres sentimentos que se revelam de forma destilada. É um cinema que inova, pois vai buscar em fatos cotidianos, o drama da solidão, do envelhecimento e suas conseqüências para a saúde e qualidade de vida. É um cinema que se nutre da metalinguagem para falar de outro cinema, como fonte de ilusão num claro movimento de superar a dureza da realidade e de contradizer todo corpo medicalizado que a mídia e suas indústrias correlatas de cosméticos e medicamentos teimam em nos sufocar.
É um cinema que combina em precisão certeira o debate atual sobre a ilusão da realidade, sejam estas de ordem da subjetividade, das convenções genéricas ou das técnicas. A narrativa audiovisual, a instancia enunciadora não se dá em evidencia, pois o narrador é aquele que dirige o ponto de vista do espectador mediado pela câmera e por demais recursos narrativos de que o meio dispõe., e, no caso de  Elsa e Fred , as imagens do filme de Fellini, imortalizadas pela  fotografia presentificam o que está ausente.
     Outra  representação, associada à velhice, concentra-se no verbo de sentido - Perder: com a velhice perde-se a visibilidade, o emprego, o lugar, o assento, o companheiro, a mediacalizada” boa forma”, perde-se o brilho, a capacidade de dirigir carros, motos e aviões, perde-se autonomia,  a capacidade de operar, de ensinar, de trabalhar em atividades que exigem precisão e muitas horas ; independência, capacidade de decisão... Mesmo com o incremento da expectativa de vida, a representação da velhice continua sendo um lugar de perdas, e isso é suficiente, para produzir um discurso imagético interpelativo sobre o próprio conceito de vida.
            É  de perdas e cumplicidade que a relação amorosa da maturidade vai se desenhando no filme Elsa e Fred. Para manter um discurso sedutor, aos olhos do público,  para quem perdeu o viço, a saúde, aos poucos vem perdendo a liberdade de conduzir o próprio carro, as finanças, os amigos, memórias e espaços.  O filme inverte a pauta das perdas e ancora-se no discurso da faceirice e humor para falar dos ganhos da maturidade mostrando outras formas de liberdade ( Elsa: Ninguém vai imaginar que dois velhos bem vestidos vão dar o calote!), de cumplicidade( Elsa; Eu só queria ter alguém para encostar minha cabeça ), de solidariedade( Elsa: Sei que você não está bem por isso evitei de falar este assunto hoje) e convoca  à atenção do espectador   pela  interpelação em  uma estrutura narrativa que se constrói através da oposição de três tempos. O passado – em que a velhice era um momento de isolamento, retração, de espera da morte; o presente em que os padrões de velhice são radicalmente transformados em uma experiência cheia de atividades prazerosas e joviais. E do futuro em que um lado sombrio é apresentado pela doença e morte. A ida de Fred ao cemitério com o neto ( num sincronizado jogo de temporalidades imagéticas) e a ação dele sorrir  para o retrato de Elsa,  grudado no tumulo dela, agrupa para representar os movimentos da vida, a dinâmica do tempo e dos espaços convertidos em uma deliciosa e divertida   história de amor.
Conforme sustenta Pasolini “ o cinema  não evoca a realidade como a língua da literatura; não copia a realidade como pintura; não mima a realidade como o teatro. O cinema reproduz a realidade em imagem e som. E reproduzindo a realidade o que faz o cinema então? Expressa para a realidade pela realidade “.[10] 

 O filme Elsa e Fred  se institui portanto como um suporte de expressão realista , que possibilita abranger o sentido da realidade no mundo regido pela profusão de imagens. Torna-se  importante ordenar e relacionar estas imagens para restabelecer um sentido essencial. Este sentido rege-se pela presentificação do discurso de uma  poesia realista em que não há separação entre conteúdo e forma. Estes dois conceitos não se reduzem, de fato irão se complementar na configuração discursiva que vê na nostalgia mítica do passado a capacidade de inventar uma poesia, para subverter o cotidiano da velhice. Foi ainda Pasolini que teorizou sobre a realidade da vida e da morte quando afirma que:

          É assim absolutamente necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida ( com que nos expressamos e a que, por conseguinte, atribuímos a máxima importância) é intraduzível.: um caos de possibilidades , uma busca de relações e significados sem solução de continuidade. A morte realiza uma montagem fulminante na nossa vida: ou seja, escolhe os seus momentos verdadeiramente significativos ( e doravante já não modificáveis por outros possíveis momentos contrários ou incoerentes), e coloca-os em sucessão fazendo do nosso presente, infinito, instável e incerto , e por isso não descritível  linguisticamente, um passado claro, estável e certo, e por isso bem descritível linguisticamente . Só graças a morte, a nossa vida serve para nos expressarmos.[11](1982:198)

O sentido da morte para Pasolini mostra que a vida ( compreendida como um espectro de infinitas possibilidades ) , em potencia, ao chegar ao seu fim vê-se imediatamente reduzida ao conjunto das obras que corpo consegui assinar e que agora, devem ser revistas e interpretadas, valorizadas ou, preservadas ou não pelos vivos, se eles sentirem necessidade disso.  Sim, porque o que chamamos de realidade pode ser entendido como uma linguagem da perspectiva da morte. Porque para Pasolini , o passado, as anterioridades míticas, o sagrado, incorporam-se a realidade, repensando as relações entre pensamento, linguagem e imagem.


 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 ASSIS, Gláucia et ali.( org.) Gênero em Movimento: Novos olhares, muitos lugares. Editora Mulheres.  Florianópolis, 2007

AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra. Cinema e Literatura no Brasil. Artemidia-Rocco, Rio de Janeiro, 2007.

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1995.

BAZIN, André. “Por um cinema impuro -  defesa da adaptação” in: O Cinema – Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BENTES, Ivana (org.) Ecos do Cinema – de Lumiére ao digital. Editora UFRJ, 2007.

BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica; Arte e Política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1994.

BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematografo. Tradução Evaldo Mocarzel. São Paulo: Iluminuras, 2005.

CASETTI, Francesco. Teorías del Cine (1945-1990). Madrid: Ediciones Cátedra, 1994.

CHION, Michel. La Audiovisión. Introducción a um análisis conjunto de la imagen y el sonido. Paidós Comunicación, Barcelona, 1993.

DEBERT, Guita Grin. A Reinvenção da Velhice: Socialização e Processos de Reprivatização do Envelhecimento. São Paulo. Editora Universidade de São Paulo: Fapesp,1999.

FALEIROS, Vicente e LOUREIRO, Altair (org.). Desafios do envelhecimento: vez, sentido e voz. Coleção Redesenhando o Envelhecimento. Editora Universa., 2007.

GUBERN, Roman. Espejo de fantasmas: De John Travolta a Indiana Jones. Editorial Espasa Calpe, Madrid, 2003.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1989.

LINS, Consuelo e MESQUITA, Cláudia. Filmar o Real: Sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Jorge Zahar editor. Rio de Janeiro, 2008.

MENDONÇA,  Maria Luiza.” Identidade e Sedução: representação do homem negro na revista Raça Brasil” in Representações do Masculino. Mídia, literatura e sociedade. Alínea Editora, Campinas, 2008.

MORAES, Geraldo e PETERS, D.(org.) Diversidade Cultural e A Convenção da UNESCO. Edição: Congresso Brasileiro de Cinema / Fundação Ford, 2006.

MORAES, Myriam.(org.) Velhice ou Terceira Idade. Estudos Antropológicos sobre Identidade, memória e política. Ed. Fundação Getulio Vargas. Rio de Janeiro. 2000.

MONTORO, Tânia e CALDAS, Ricardo (org.) De olho na imagem. Ed. Abaré, Brasília, 2006.
_____. Imagem em Revista. Ed. Abaré, Brasília, 2007 .

PASOLINI, Pier Paolo. Diálogo com Pasolini: Escritos (1957 -1984). São Paulo: Nova Stella Editorial, 1986.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas Afinal... O que é mesmo Documentário. Editora SENAC: São Paulo, 2007.

RUMBLE, Patrick. Píer Paolo Pasolini: Contemporary  Perspectives. Toronto: University of Toronto Press., 1994.

WADJA, Andrzej. Um Cinema chamado Desejo. Editora Campus, Rio de Janeiro, 1989.
NOTAS

[1]  Doutora em Comunicação Audiovisual pela Universidade Autônoma de Barcelona. Professora e pesquisadora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Coordenadora da linha de pesquisa em imagem e som da Unb. Atualmente encontra-se em pos doutoramento em cinema na UFRJ.
[2] JODELET,  D. Representações sociais : um domínio em expansão . In: JODELET, Denise (org.) As representações sociais . Rio de Janeiro: UERJ,2001.
[3] ALMEIDA, A.M.O. A pesquisa em representações sociais: proposições teóricas - metodológicas : In : SANTOS , Maria de Fátima e ALMEIDA , Leda Maria(orgs.) Diálogos com a teoria das representações sociais . Recife, Editora da Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2005.  
[4] Laurentis, T. “ Rethinking womens cinema: Aesthetic and feminist theory. In Patricia Erensa(org.) Sexual stratagems: The world of women in film. Nova York: Horizon,1977.
[5] Asumpção, L. O. T. (org.) O idoso e o cinema.  Palestra proferida na Universidade Católica de Brasília. , Brasília,  Semana de Extensão da UCB, abril de 2007.
[6] Brayner, M.G. Pier Paolo Pasolini: Uma poética de realidade. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Literatura. Departamento de Teoria Literária e Literaturas.  Universidade de Brasília, 2008. 
[7] Le Goff, J. “Documento / Monumento” in The Historian and the Film. Paul Smith(org.) Londres/ Nova York/Melbourne, Cambridge University Press,1976, pp.98.
[8] Ferro, M. Cinema e História. Ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro,1992.
[9] Kohli, M. e Meyer , J.W. Social structure and social construcction of life stages. Human Development(29),1986.
[10] PASOLINI, P.P. Empirismo Hereje. Trad. Miguel  Serras Pereira . Assirio e Alvim: Lisboa ,1982.
[11]. Idem., p. 198.

Indicações bibliográficas - Prof.a Norma Telles

A Profa. Dra. Norma Telles disponibiliza um site com informações sobre sua produção bibliográfica.
Veja aqui - http://www.normatelles.com.br/textos.html
Veja também as publicações da autora na Revista Labrys - Estudos Feministas:
- Traços e Signos - na Revista Labrys n. 11.
- Fragmentos de um mosaico: escritoras brasileiras no século XIX. Revista Labrys n. Labrys 10.
- Viajantes - nas ultimas edições da Revista Labrys.