Velhices e
envelhecimentos:
Dispersas memórias na cinematografia mundial
Tânia Siqueira Montoro [1]
1.Velhice e memória no cinema:
São de
diferentes gêneros e nacionalidades filmes que geram imagens dos velhos, de
seus processos de envelhecimento e de suas mortes. Estes filmes identificam as
dores e infortúnios dos idosos, mas também seus amores, seus desejos, suas
escolhas, seus sonhos revelando-se como material empírico de valor para observação
e critica nos estudos da comunicação audiovisual especialmente, em sua
interface com estudos de gênero.
Consideramos
envelhecimento todos os processos de alterações que envolvem os indivíduos no
decorrer da vida. Longevidade é a capacidade de vivenciar, de melhor forma e
por mais tempo, os processos de envelhecimento. Debruça-se, este estudo, sobre
os processos de produção de sentidos e significações na complexa relação entre
cinema e formas de representação social da diversidade, isolando as temáticas
da representação da velhice e dos processos de envelhecimento para
substanciar a análise dos filmes selecionados.
Para Jodelet (2001) [2] os
estudos da representação social remetem a uma forma de conhecimento, socialmente
elaborada e partilhada, que contribui para a construção de uma realidade comum
a um conjunto social. As representações orientam e conduzem as condutas e as
comunicações sociais e interpessoais. Da mesma forma, intervem em processos de
difusão e assimilação de conhecimentos, o desenvolvimento individual e o
coletivo, a definição de identidades pessoais e sociais, a expressão de grupos
e as transformações sociais.
Na linguagem
cinematográfica a representação está organizada em um núcleo central. Esse é o
elemento fundante da representação, uma vez que determina a significação e
organização que ela possui. A teoria das representações sociais interessa, por
várias razões, a área de comunicação audiovisual e conforme sublinha
Almeida(2005)[3] “os
diferentes meios permitem que as representações transitem em distintos espaços
, assumindo significados e funções diferenciadas , o que contribui para sua
própria transformação” Destaca, a pesquisadora, quatro níveis de análise para os estudos da representação
na analise cultural contemporânea. .
O primeiro focaliza
os processos intra-individuais e analisa o modo como às pessoas organizam suas
experiências com o meio ambiente. O segundo centra-se em processos inter –
individuais e situacionais, ao buscar em sistemas de interação os princípios
explicativos típicos de dinâmicas sociais. O terceiro leva em conta as
diferentes posições que as pessoas ocupam em relações sociais e analisa como
essas posições modulam os processos do primeiro e segundo níveis. O quarto enfoca
os sistemas de crenças, representações, avaliações e normas sociais. Desta
forma, a autora, compreende os processos de representação como princípios
gerados por tomadas de posição, ligados às inserções sociais especificas que
organizam os processos simbólicos que interferem nas relações sociais.
A imagem do velho
e da velhice se edifica nas relações sociais e culturais de cada sociedade e
grupo e, sofre mudanças, ao longo do tempo. Essa imagem é resultante, muitas
vezes, da rejeição de algo não desejado, que deixa de ser apenas a morte e
passa a ser o próprio estado de velhice e envelhecimento. A titulo de exemplo focamos a adaptação
filmica do clássico de Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray (1945) em que envelhecer é difícil, exige cuidados, conforma
processos de insegurança e dependência. Outros filmes maculam esta dificuldade
de produzir sentidos a experiência de vida,
que é envelhecer e morrer. Pois, se
a natureza nos conduz para um lado, relembrando seus ciclos, a cultura visual
nos oferece um outro, impondo-nos um modelo único de beleza, geralmente
associado com o vigor da juventude.
Este modelo vem
traduzido num eterno aperfeiçoar-se,
para parecer cada dia mais novo, e assim
aumentar a capacidade de sedução/identificação/
aceitação do corpo, tomado como elemento de valorização de um modelo veiculado e revelado no domínio de
novas tecnologias de gênero ( no sentido dado por Laurentis)[4]
que vão de cirurgias plásticas a processos de mudança de cor( bronzeamentos,
branqueamentos) e mudança de sexo, processos
transformadores que passam a ser
acessíveis para uma massa de
consumidores/ público/ telespectadores contribuindo para que cada vez, no mundo
todo, pessoas mais jovens( fenômeno observado no mundo ocidental ) busquem
intervenções cirúrgicas de natureza exclusivamente estética.
Trata-se, portanto
do mundo das aparências, revelação identitária conduzida por uma imagem reveladora de um corpo sempre em
mutação como condição única de verdade e realidade e ainda, de negação do tempo
vivido.
Ao longo da cinematografia a representação da
velhice se consagrou por memoráveis
personagens que figuram como protagonistas de cenas hilárias e consagradas na
memória do audiovisual. Para acompanhar a reflexão valho-me de alguns exemplos da
cinematografia para pinçar fragmentos que conformam figurações dos processos de
envelhecimento tentando apontar as formas de representação que circulam na
narrativa filmica.
Num esforço de memória apontamos alguns filmes
que marcaram seus enredos, tramas e personagens com formas de representação da
maturidade como em
Morangos
Silvestres ( Bergman,:1957) em que .um professor de
medicina , de 78 anos, a caminho da Universidade de Lund, onde receberá um
premio por sua contribuição cientifica, revela uma imagem inesquecível, que é
aquela que mostra um velho, sábio,que purga uma vida inteira sem amor.
Em Morte em Veneza (Viscondi:1971) os
velhos envergam maquiagens e máscaras de juventude que se desfazem ao mesmo
tempo da decadência veneziana pelo surto da cólera, ambiente que contribui para
que os jovens desprezassem o futuro( a velhice) . Encontramos como lapidar o
discurso sobre a representação da velhice: “ ... não há em todo mundo impureza
tão impura quanto a velhice”entoada por um dos principais protagonistas dessa
película.
Em Ensina-me a Viver ( Hal Ashby,1972), o cinema americano inaugura
uma nova forma de representação da velhice, naquele momento, em que a geração Easy
Rider envelhecia, o filme tornou-se um ícone da cinematografia dedicada a
temática inaugurando um discurso provocador e irônico, ao colocar um jovem de 20 anos( Harold),
pedindo em casamento uma senhora de 79 (Maude). A senhora estabelece uma
relação profunda, complexa e duradoura com aquele jovem obcecado pela morte, e
que passou boa parte de sua vida indo a funerais ou simulando suicídios. Este
jovem encontra-se casualmente com a velhice que esbanja vivacidade e por meio
dos sentidos que dá ao cotidiano, expõe a beleza da vida. Este diálogo entre
vida e morte , tragédia e comicidade,
desperta no público uma sensibilidade para vivenciar , uma tocante
história de relações interpessoais , que nos faz refletir sobre o sentido da
vida e não da morte ... Inaugura, este filme outro olhar sobre as relações de
gênero e formas de sedução feminina.
No magnífico Cinema Paradiso ( Giuseppe Tornatore,
1989) uma obra prima de ode ao cinema e
à vida, observamos que o centro representacional da trama narrativa recai sobre
a amizade de um garoto, e um amadurecido projetista de cinema( Alfredo) no
interior da Itália. Utilizando de uma linguagem simbólica e poética, o filme
nos conduz a mergulhar na memória da
sétima arte, esmiuçando as transações constantes entre presente e passado e
passado e futuro, que fundamentam toda a complexa relação entre espaço e tempo
na linguagem cinematográfica.
Ainda, o
diretor italiano Tornatore no filme Estamos
todos bem (1988) orienta o olhar
do público, do espectador sobre a representação da velhice, sublinhando a dificuldade que a sociedade ocidental tem em
lidar com a morte,especialmente quando se trata de alguém que não atingiu a
velhice. O personagem do solitário Matteo ( vivido por Marcelo Mastroianni) que busca
a companhia de seus filhos é interpelado pela dureza das fatalidades que
acometem a vida da família. Em determinado momento aquele pai, viúvo e solitário
imprime sentido ao cotidiano e aprende com as pessoas, que às vezes “...é melhor fingir que não houve nada , não
entender e não procurar esclarecimentos”. Em seu livro O Cotidiano e a História a filósofa Agnes Heller observa que:
... a vida cotidiana é a vida do homem inteiro;
ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua
individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos ,
todas as suas capacidades intelectuais , suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, idéias e ideologias. O fato de que todas as capacidades
se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que nenhuma delas
possa realizar-se , nem de longe, em toda sua intensidade. O amadurecimento do
homem significa socialmente que o individuo adquiriu todas as habilidades imprescindíveis
para vida cotidiana da sociedade. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a
sua cotidianidade. ..(Heller1989:18).
E é no
cotidiano de uma pequena cidade européia, hipócrita e conservadora que o filme A excêntrica família de Antônia,( Marleen
Gorris -1995) que o espectador é levado ao passado para acompanhar a vida da
matriarca Antonia, narrada por sua bisneta. Na família de Antonia, o amor não
tem barreiras, é livre, surge para todos e aparece sob várias formas. Neste
cotidiano a matriarca executa a justiça pelas próprias mãos, seja para defender
seu circulo afetivo ou qualquer um que precise dela e não tenha a quem
recorrer. Antonia é apresentada como alguém à frente do seu tempo, construtora
de um lar cheio de vias e sobreviventes em meio aos destroços de uma existência
sem objetivos. O argumento do filme trata da existência ( o viver cotidiano)
como um exercício de estoicismo: deve-se preservar nas escolhas, o que somos a
despeito das adversidades. Não se pode conseguir tudo, mas, se preservarmos
nossa essência, consegue-se o necessário. E quando a morte chega parte-se com
coração tranqüilo, ficam apenas saudades e memórias revisitadas como recordações.
O cotidiano
também representa o núcleo central da trama narrativa filmica em Conduzindo Miss Daisy ( Bruce Beresford,1989) que relata a vida
de uma rica judia de 72 anos, que depois de um acidente de carro, é obrigada
pelo filho a conviver com um motorista negro contratado por ele. Inaugura-se aí
uma grande amizade que durarã vinte anos
de cumplicidade e companheirismo. Este filme construído sobre relações de
classe, gênero e raça conferiu a atriz, Jéssica Tandy , a época com 80 anos, o
Oscar por sua atuação, entrando na história como a interprete mais velha a
ganhar uma estatueta na categoria
O mais velho cineasta em atividade, o
diretor Manoel de Oliveira tinha mais de 90 anos quando realizou Vou para casa (Portugal:2001). O filme
narra a história de um ator de teatro que tem uma carreira de sucesso. Ele vive
a tragédia com a morte de sua mulher, filha e genro, em um acidente. O tempo
passa e a vida volta ao dia a dia, a normalidade do cotidiano. Gilbert
compartilha sua cotidianidade com seu neto e se recusa a fazer qualquer coisa
só por dinheiro. Lança-se a encenar Ulisses de Joyce. No dia da estréia da
peça, o ator mostra as falhas na memória esquecendo o texto que havia estudado
por tantos meses. Então, calmamente, pára e claramente diz: “Vou para casa”
resignando-se frente aos fatos, a realidade do envelhecimento, as limitações da
vida e da arte frente a circunstancias da realidade.
Amizades de velhos e crianças acrescem a
cinematografia sobre a temática. Em Confissões
de Schmidt ( Alexander Payne, 2002)que magnificamente retrata a complexa e
profunda relação de Scmidt, que aos 66 anos, com dificuldades para se adaptar a
nova vida de aposentado, até que algo lhe aproxima da vida, quando resolve
adotar o menino Ngubu, que vive na Tanzânia. O discurso fílmico é mediado por
um conjunto de cartas trocadas entre os personagens, que comparecem a narrativa
imagética, como pessoas comuns que falam do envelhecimento, da solidão e da
morte com simplicidade convocando a imortalidade dos bons momentos da vida!
Na
cinematografia oriental a relação entre mentalidade e realidade inscreve-se com
altivez na representação da velhice e dos processos de envelhecimento. A
tradição é conclamada para explicitar os valores que fundamentam a morte na
cultura oriental.
No inesquecível A Balada de Narayama (Shohei Imamura, 1983), filme
clássico da etnografia mundial, em que em uma pequena aldeia no norte do Japão,
uma senhora de 70 anos, que apresenta uma vitalidade invejável, é levada a
montanha de Narayama, que era habitada por um Deus que orientava o tradicional ritual da passagem da vida para
morte, sendo esta forma de morrer considerada por aquela comunidade no norte do
Japão, mais digna do que a provocada por uma doença. O filme retrata também o
sofrimento de Orin, em aceitar a tradição desta forma de morte, para sua mãe,
em um conflito entre tempo cultural e tempo biológico.
No enigmático Rapsódia de agosto ( Kurosawa:1991) o diretor singulariza a mentalidade oriental
de cultuar a sabedoria dos velhos. A avó protagonista central - nas cenas
finais - corre sob a chuva com dificuldade de segurar as reviradas de um guarda
chuva atingido pela passagem de um tufão.
Atrás dela correm os filhos e netos. Para Assunção ( 2007) [5] “
o diretor, nesta cena, coloca a necessidade de manter viva a memória do
passado,ao mesmo tempo, em que não se perca a urgência de seguir adiante não
importa contra o quê?”
Em Mandadayo
,do mesmo diretor, (1993) um professor que se aposenta sofre imensamente com a
perda de um gato de estimação. Depois de algum tempo resolve substituí-lo por um “gato
qualquer”. A linha dramática do filme
encaminha-se para uma lição de vida mostrando que tudo é substituível e que, os
pequenos afetos são os alimentos da existência em qualquer plano. O filme é de
uma sutileza exemplar e um libelo de consagração da sabedoria de aprender a ser
e viver só.
A representação da velhice na cinematografia oriental
salpica o filme A touch of Spice do
grego Tassos Boulmetis ou o Tempero da
Vida (1992) em que a relação entre um avô( filosofo e mentor) introduz o
neto, que cresceu em Istambul , nos segredos da gastronomia ensinando que tanto
a comida como a vida requerem um pouquinho de sal para adicionar-lhes sabor e
emoção. Por meio da culinária árabe o avô rememora a vida cotidiana da família,
os mitos, ilusões, o viver no exílio mesclando ingredientes do cinema poesia de
Pasolini, conforme argumenta Brayner:.
Para Pasolini, a realidade da maneira
que se apresenta ao olho humano era um modo de comunicação, da mesma forma que
o cinema. No decorrer de suas investigações intelectual ele propôs como estas
duas instâncias poderiam interagir, resultando em uma forma inédita de olhar e
perceber a realidade. Sua contribuição decisiva seria orientar este discurso no
sentido de originar uma práxis cultural. Seu conceito distinto de realidade se
configura na prática social, especialmente no que se refere às realidades que
não estão inseridas aos padrões de consumo emergentes daquela época. Desta
maneira temos que a realidade para Pasolini está intrinsecamente associada ao
processo de formação e compreensão da imagem. O real pasoliniano é o seu signo.
O cinema do autor – cineasta escreve a realidade, é escritura de poesia( Brayner2008:90)[6].
No Brasil a
diretora Carla Camurati, em 2001, realiza o filme Copacabana em metáfora ao populoso
bairro, de muitos aposentados, da zona sul do Rio de Janeiro. O filme gira em
torno da morte do personagem Alberto perto de completar 90 anos.
Com uma imagem bem humorada da
morte na velhice, o filme, retrata também o inconformismo destilado pelo
comentário dos amigos, recheando o imaginário do espectador do “mito do eterno
retorno”, acionado quando Alberto levanta-se do caixão, assustando e alegrando,
ao mesmo tempo, as pessoas do velório. A narrativa filmica encaminha-se para um
reencontro de imaginários e memórias de
um inesgotável sentimento de brincar com a morte ao respeitar a vida.
Ainda do promissor cinema brasileiro contemporâneo os filmes Central do Brasil , A casa de Alice e Do outro
lado da Rua observamos uma mudança
substantiva quanto a representação da velhice e dos processos de envelhecimento
na construção das personagens centrais - uma solitária professora que escreve cartas na central do
Brasil no Rio de Janeiro ; uma avó e dona de casa que é o esteio tanto financeiro como
emocional de toda uma família e, uma solitária aposentada que passa a viver a
vida olhando e confiscando a vida de um homem(recém viúvo) do outro lado da sua
rua.
O
cinema brasileiro atual vem trazendo outros olhares para os processos de
maturidade e envelhecimentos para a tela do cinema tanto no premiado Chega de Saudades de Lais Bodansky(
2007) como o delicado Depois
daquele baile de Roberto Bomtempo, 2006. Ambos apresentam inovadoras
significações imprimindo um olhar singular e desafiador para as relações
amorosas, que se estabelecem nos processos de corpo, amadurecimento e sedução.
O primeiro retrata as casas de baile de São Paulo, lócus desconhecido da
modernidade, mas que até hoje se estabelece como pólo de vivências e convivências para seus assíduos freqüentadores O segundo
com exemplar atuação, da atriz e feminista, Irene Ravache, contabilizando
desempenho na cozinha ( no filme ela é uma magnífica quituteira mineira ), ou
nos espaços simbólicos de quem ainda vive ilusão e sonhos em romances de
verão.
Observa-se, ao
longo da cinematografia, que os filmes tem sido um importante interlocutor
deste diálogo entre imagem e representação, promovendo a oportunidade de circular outros sentidos para o repertorio imagético que ancora as
formas de representação da velhice
e do envelhecimento/morte
.Destaca-se especialmente, as configurações burlescas que a representação da
mulher madura vem encontrando nas ultimas décadas. Já podemos agora conviver e
fruir de novas imagens do corpo e do prazer feminino ainda, que este domínio, se
realize dentro de um “gaze eyes
masculino” em que a trajetória do olhar sob o quadro cinematográfico advem de
um ponto de vista masculino (configuração e dependência da felicidade e prazer
feminino atrelada à capacidade de sedução do olhar masculino).
Realismo, poesia e ilusão: Elsa e Fred um amor de paixão.
Nos últimos anos, essa expressão visual de
novas polaridades identitárias sobre amadurecimento e processos de
envelhecimento, impactou sobre maneira, as formas de representação da mulher
madura. Novos protagonismos sociais emergem orientando um olhar mais plural e
multifacetado para o processo de envelhecimento feminino.
Le Goff[7](1976:98)
chama atenção para o uso cientifico do documento fílmico, seja ele de ficção ou
documental para análise cultural apontando que o filme...” não é qualquer coisa
que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo
as relações de força que aí detinham o poder”. Para o autor, estes novos
objetos de análise passam a ser encarados como fontes preciosas para compreensão
dos comportamentos, visões de mundo, dos valores e das ideologias de uma
sociedade ou de uma determinada época.
Alarga-se assim, o espectro de possibilidades de todo e
qualquer filme constituir-se em objeto de conhecimento que ganha densidade
metodológica com as análises filmicas empreendidas por Marc Ferro[8]. Em
suas investigações o pesquisador sublinha as condições de produção, circulação
e recepção das imagens que fomentam conteúdos para uma crítica autentica da
complexa relação entre cinema e história da cultura. Nas análises sobre conteúdos
dos filmes ( tema , fatos históricos e personagens cotidianos) ele destaca a importância do analista decodificar
o conjunto de imagens e sons em circulação, os diálogos presentes, os elementos
persuasivos de que lançam mãos os personagens, para se construírem em cena, e
as intensidades de ações que imprimem
determinadas estilos e modos de vida.
Para
o estudo das configurações da experiência estética e visual na representação
filmica - de gênero - na cinematografia
contemporânea, valho-me da contextualização
da mutante experiência histórica
de ser e estar mulher nos espaços sociomediaticos que movem as formas de
representação social na contemporaneidade . O cinema assim é visto como
experiência de desejo utópico e não restrito a ilusão do movimento, mas proporcionando
modos de ver e conhecer a realidade. Esta realidade está mediada por outras
tecnologias que impactam substantivamente o corpo feminino, as formas
reprodutivas que oferecem outros modos de periodicizar a vida e definir as
práticas relacionadas a cada período. A mulher pode ou não ser mãe aos quarenta
ou aos cinqüenta anos. Outra mudança substantiva emerge no desenho da unidade
familiar cada vez mais, especialmente nos grandes centros, consagrando a mulher como chefe de família. A longevidade
não é acompanhada de multiplicação da prole. Assiste-se a cada dia, uma redução
substantiva no número de filhos e um aumento progressivo da expectativa de
vida. A cronologização da vida, na modernidade, mostra que o processo de agrupar
pessoas em função da geração é totalmente distinto de fato de agrupar pessoas
em função do estágio de maturidade. De acordo com Kohli e Meyer “...trata-se de
chamar a atenção para o fato de que o processo de individuação, próprio da
modernidade, teve na institucionalização do curso de vida uma de suas dimensões
fundamentais. Uma forma de vida em que a idade cronológica era praticamente
irrelevante foi suplantada por outra, em que a idade é uma dimensão fundamental
na organização da vida social” (1986:45)[9].
Deriva daí a observação de que o fato de a idade cronológica não estar
ligada a um aparato que domine a reflexão sobre os estágios da maturidade demonstra também, a flexibilidade desse mecanismo no que diz respeito a criação
de novas etapas e redefinições de modelos simbólicos.
Produto de uma parceria
entre Argentina e Espanha, com apoio da Televisão Espanhola, o filme Elsa e Fred Um amor de paixão, comédia
romântica com excelente aceitação do público e da critica foi tomada para análise
da representação dos processos de velhice e amadurecimento no cinema contemporâneo.
A trama central move-se a partir de duas
narrativas polarizadas sobre a velhice e os processos de envelhecimento. De um
lado, a personagem da faceira Elsa, uma senhora de idade, mãe de dois filhos,
avó, vizinha de Fred que passa a ser novo inquilino de um edifício médio de
Madri. Fred um viúvo vem morar no edifício porque terminou de perder sua mulher
e fica com seu cachorro Bonaparte, vivendo de remédios e suportando seu cotidiano
solitário, somente interrompido pelos rompantes da filha, genro e neto. Esse
cotidiano é arrombado quando, logo nas cenas iniciais, Elsa conhece Fred –
Alfredo (Manuel Alexandre) por causa de uma atrapalhada. Ela bate na traseira
do carro da filha de Fred frente aos olhos assustados do seu neto e, por isso,
o ameaça de morte caso comente alguma coisa.
A assustadora ameaça não surte
efeito, causando certo escândalo quanto à cobrança do conserto do carro da
filha daquele novo vizinho. Alfredo (Fred) é um tanto hipocondríaco. Mas Elsa, que estava incumbida – muito
à contra gosto – de entregar o cheque para sanar as despesas decorrentes do
pequeno acidente/ incidente, mudará o cotidiano desse velhinho. O diretor
assinala o desfecho da narrativa com o seguinte fragmento: Fred entreolha o
apto da vizinha e se depara com uma enorme foto de Anita Ekberg no filme La
Dolce Vita , de
Fellini, vencedor de Palma de Ouro de Cannes em 1960. E é precisamente aqui que
o diretor assinala o encontro amoroso dos vizinhos. O filme de Fellini serve
como espaço de mediação entre a memória audiovisual e memórias da vida daquela
senhora – Elsa. Ela coopta o olhar do público, não mais pelos dotes físicos que
exibira na juventude, que pudera a fazer sonhar ser atriz como a Anita do filme de Fellini. Ela seduz o público por impor outro movimento
de significações ao amor romântico - um olhar advindo da ilusão
cinematográfica, um olhar pontuado por desafios e, que pelo mecanismo da
inversão, da suspensão, da fruição e identificação que compraz uma senhora
faceira que enfrenta uma doença terminal e ainda, assim tem muito humor e sonha
em ter um grande amor para com ele mergulhar no universo imaginário da Fontana
de Trevi, em experiência mimética que proporciona o premiado filme felliniano. Com este posicionamento metalingüístico, a
personagem abre-se ao público não mais como uma encrenqueira e confusa senhora
de meia idade, ela invade para inverter o nosso olhar e apontar esta cegueira em
que mergulha nosso cotidiano. A personagem anuncia novas temporalidades e
identidades para abrigar a ilusão deste fragmento fílmico.
O filme Elsa
e Fred do diretor argentino Marcos Carnevale é generosamente narrado como
poesia do cotidiano, em que a compreensão e desejo humano fazem aflorar nobres
sentimentos que se revelam de forma destilada. É um cinema que inova, pois vai
buscar em fatos cotidianos, o drama da solidão, do envelhecimento e suas
conseqüências para a saúde e qualidade de vida. É um cinema que se nutre da
metalinguagem para falar de outro cinema, como fonte de ilusão num claro
movimento de superar a dureza da realidade e de contradizer todo corpo
medicalizado que a mídia e suas indústrias correlatas de cosméticos e
medicamentos teimam em nos sufocar.
É um cinema que combina em
precisão certeira o debate atual sobre a ilusão da realidade, sejam estas de
ordem da subjetividade, das convenções genéricas ou das técnicas. A narrativa audiovisual,
a instancia enunciadora não se dá em evidencia, pois o narrador é aquele que
dirige o ponto de vista do espectador mediado pela câmera e por demais recursos narrativos de que o
meio dispõe., e, no caso de Elsa e Fred , as imagens do filme de
Fellini, imortalizadas pela fotografia presentificam
o que está ausente.
Outra representação, associada à velhice,
concentra-se no verbo de sentido - Perder: com a velhice perde-se a
visibilidade, o emprego, o lugar, o assento, o companheiro, a mediacalizada”
boa forma”, perde-se o brilho, a capacidade de dirigir carros, motos e aviões,
perde-se autonomia, a capacidade de
operar, de ensinar, de trabalhar em atividades que exigem precisão e muitas
horas ; independência, capacidade de decisão... Mesmo com o incremento da
expectativa de vida, a representação da velhice continua sendo um lugar de
perdas, e isso é suficiente, para produzir um discurso imagético interpelativo
sobre o próprio conceito de vida.
É de perdas e cumplicidade que a relação amorosa
da maturidade vai se desenhando no filme Elsa e Fred. Para manter um discurso
sedutor, aos olhos do público, para quem
perdeu o viço, a saúde, aos poucos vem perdendo a liberdade de conduzir o próprio
carro, as finanças, os amigos, memórias e espaços. O filme inverte a pauta das perdas e ancora-se
no discurso da faceirice e humor para falar dos ganhos da maturidade mostrando
outras formas de liberdade ( Elsa: Ninguém vai imaginar que dois velhos bem
vestidos vão dar o calote!), de cumplicidade( Elsa; Eu só queria ter alguém
para encostar minha cabeça ), de solidariedade( Elsa: Sei que você não está bem
por isso evitei de falar este assunto hoje) e convoca à atenção do espectador pela interpelação em uma estrutura narrativa que se constrói
através da oposição de três tempos. O passado – em que a velhice era um momento
de isolamento, retração, de espera da morte; o presente em que os padrões de
velhice são radicalmente transformados em uma experiência cheia de atividades
prazerosas e joviais. E do futuro em que um lado sombrio é apresentado pela
doença e morte. A ida de Fred ao cemitério com o neto ( num sincronizado jogo de
temporalidades imagéticas) e a ação dele sorrir para o retrato de Elsa, grudado no tumulo dela, agrupa para
representar os movimentos da vida, a dinâmica do tempo e dos espaços
convertidos em uma deliciosa e divertida
história de amor.
Conforme sustenta Pasolini “ o cinema não evoca a realidade
como a língua da literatura; não copia a realidade como pintura; não mima a
realidade como o teatro. O cinema reproduz a realidade em imagem e som. E
reproduzindo a realidade o que faz o cinema então? Expressa para a realidade
pela realidade “.[10]
O filme Elsa e
Fred se institui portanto como um
suporte de expressão realista , que possibilita abranger o sentido da realidade
no mundo regido pela profusão de imagens. Torna-se importante ordenar e relacionar estas imagens
para restabelecer um sentido essencial. Este sentido rege-se pela
presentificação do discurso de uma poesia realista em que não há separação entre
conteúdo e forma. Estes dois conceitos não se reduzem, de fato irão se
complementar na configuração discursiva que vê na nostalgia mítica do passado a
capacidade de inventar uma poesia, para subverter o cotidiano da velhice. Foi
ainda Pasolini que teorizou sobre a realidade da vida e da morte quando afirma
que:
É assim absolutamente necessário
morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da
nossa vida ( com que nos expressamos e a que, por conseguinte, atribuímos a
máxima importância) é intraduzível.: um caos de possibilidades , uma busca de
relações e significados sem solução de continuidade. A morte realiza uma
montagem fulminante na nossa vida: ou seja, escolhe os seus momentos
verdadeiramente significativos ( e doravante já não modificáveis por outros
possíveis momentos contrários ou incoerentes), e coloca-os em sucessão fazendo
do nosso presente, infinito, instável e incerto , e por isso não
descritível linguisticamente, um passado
claro, estável e certo, e por isso bem descritível linguisticamente . Só graças
a morte, a nossa vida serve para nos expressarmos.[11](1982:198)
O sentido da morte para Pasolini mostra que a vida (
compreendida como um espectro de infinitas possibilidades ) , em potencia, ao
chegar ao seu fim vê-se imediatamente reduzida ao conjunto das obras que corpo
consegui assinar e que agora, devem ser revistas e interpretadas, valorizadas
ou, preservadas ou não pelos vivos, se eles sentirem necessidade disso. Sim, porque o que chamamos de realidade pode
ser entendido como uma linguagem da perspectiva da morte. Porque para Pasolini
, o passado, as anterioridades míticas, o sagrado, incorporam-se a realidade,
repensando as relações entre pensamento, linguagem e imagem.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
[1] Doutora em Comunicação Audiovisual
pela Universidade Autônoma de Barcelona. Professora e pesquisadora da Faculdade
de Comunicação da Universidade de Brasília. Coordenadora da linha de pesquisa
em imagem e som da Unb. Atualmente encontra-se em pos doutoramento em cinema na
UFRJ.
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[10]
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[11].
Idem., p. 198.