4 de dezembro de 2012

Texto da exposição da prof.a dra. Diva do Couto Gontijo Muniz


Mulheres, História e Cidadania

Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB)

            Como o próprio título indica, a presente comunicação é um esforço de reflexão crítica, e portanto histórica, acerca da presença e do protagonismo das mulheres na construção da cidadania no Brasil. Nesse exercício, que inclui o ato de desnaturalização da memória e, ao mesmo tempo, de sua reorganização, o propósito político de conferir visibilidade historiográfica à presença e protagonismo das mulheres em tal processo. Além disso, e por conta disso, o propósito em mostrar os efeitos de práticas discursivas, particularmente a historiográfica, na produção de ocultamentos e silenciamentos acerca do agenciamento das mulheres na construção da cidadania no Brasil. Cidadania, percebida na acepção dada por Hannah Arendt (1995), como “direito a ter direitos”, ou seja, como conceito que envolve um amplo leque de possibilidades quanto ao acesso aos direitos políticos, civis, sociais, sexuais e culturais por parte de cada um dos integrantes da sociedade brasileira, sem distinção de qualquer tipo. A história da conquista desses direitos, tanto ao norte como ao sul do Equador, é a história dos feminismos que, desde o século XIX, denunciaram a dominação masculina, expressa em várias formas de opressão, exclusão e discriminação praticadas contra as mulheres, e lutaram pela sua emancipação.
É claro que muito antes desses movimentos, e muitas vezes fora deles, ou até mesmo sem com eles simpatizarem, ou deles terem conhecimento, muitas mulheres superaram o estigma da condição biológica, ao ocupar seus lugares de fala e espaços de poder na sociedade brasileira, em diferentes momentos e contextos. Nesse sentido, e em minha leitura, embora ciosas do feminino que as conformava e as identificava, essas mulheres não deixaram, porém, de serem feministas, na acepção contemporânea do termo, pois, em condições adversas, sob a ordem patriarcal e androcêntrica, construíram de modo singular suas vidas, esculpiram-se a si próprias, ganharam visibilidade pública e política, confrontando as prescrições de sua época quanto aos seus lugares e papéis sociais. Foram protagonistas de suas histórias, marcadas  por atitudes políticas pioneiras, inovadoras e sobretudo transgressoras em seus respectivos campos de atuação.
Se a historiografia delas não fala, não é porque não tenham existido, mas é porque estavam fora dos locais e dos papéis estabelecidos como de seu domínio, daí ignorá-las. Como a história é um discurso soletrado no masculino, apenas reconhece a presença das mulheres nos lugares autorizados, isto é, no espaço privado da domesticidade e não no da política, da economia e da guerra. E isso não se dá por acaso, pois, afinal, o privado é o lugar do confinamento, da exclusão do mundo público e da cidadania; ou, como bem define Hannah Arendt, é o lugar da “privação”, da “ausência” ou do sentimento de não existir (ARENDT, 1995). Por outro lado, quando as reconhece naqueles espaços da política e da cultura ou estabelece para elas um domínio próprio, isolado, identificado como “História das Mulheres”, ou as retrata na grande narrativa como “heroínas”.
Significativamente, mulheres atuantes e vibrantes, de carne e osso, atitudes e sentimentos, por exemplo, Anita Garibaldi (guerrilheira, republicana e farroupilha), Catarina Paragaçu (índia, guerreira e agenciadora de alianças entre colonos e tupinambás); Clara Camarão (índia e destemida combatente na guerra contra os holandeses), Maria Quitéria de Jesus (nacionalista, transgressora e combatente audaciosa), Madalena Caramuru (letrada e pioneira abolicionista), Leopoldina de Habsburgo-Lorena (política habilidosa, mulher ilustrada e governante interina do Império), Princesa Isabel (política, regente do reino por três vezes e abolicionista) – encontram-se incorporadas na grande narrativa histórica, porém, na condição de heroínas.
Ao serem significadas como heroínas, as mulheres são desumanizadas, aprisionadas a uma construção mitificadora que opera o sequestro de suas dimensões humana e histórica. Afinal, heroína é um ser mítico, etéreo, a-histórico, a-temporal, privado de existência própria, porque localizado no panteão dos não-humanos, elevado à condição de modelo, subtraído de sua humanidade e de sua historicidade. Nessa construção engenhosa, as mulheres/heroínas são incluídas na narrativa histórica justamente porque não desestabilizam a ordem do discurso com suas condutas diferentes; reforçam, aliás, a ordem patriarcal como pessoas excepcionais, imagens idealizadas e modelos de mulher e de mãe, orientadores da conduta feminina sob aquela perspectiva.
O protagonismo de cada uma dessas mulheres foi assim esvaziado de conteúdo político, ao ser domesticada como heroína pela/na historiografia. Este discurso, ao representá-las como heroínas (redentora, paladina, patrona, libertadora, mãe do povo brasileiro, mãe da nação), apazigua o efeito perturbador de suas atuações fora dos lugares e dos papéis a elas prescritos como próprios de seu sexo social, recolocando-as como seres a-históricos. Nessa construção, evidenciam-se os jogos de poder que presidem a escrita da história e os usos da memória tecida em meio a uma política de ocultamento, mitificação, exclusão e negação da presença e participação histórica de alguns atores sociais, dentre estes, as mulheres.
Excluídas do discurso histórico, e também de outros, como o literário, o filosófico e o científico, encontram-se muitas mulheres que, não obstante suas contribuições para o mundo da cultura e do saber, tornaram-se objeto de políticas de exclusão e de silenciamento. Ocasionalmente, quando algumas delas são incorporadas naqueles discursos são tratadas como exceções que confirmam a regra de que os mundos da cultura, da escrita e das ciências ainda permanecem como domínios masculinos. Suas atuações políticas e históricas, importantes para a construção da cidadania brasileira, foram reconhecidas nas referidas áreas de atuação como “casos excepcionais”, de modo a ressaltar que, em assuntos de homens, não há espaço para mulheres “normais”.
Como historiadora, feminista e cidadã, não poderia deixar de destacar a política de silenciamento historiograficamente praticada em relação ao protagonismo das mulheres na construção da cidadania brasileira. O exercício do poder evidencia-se na domesticação que a história faz do passado, significado conforme a lógica sexista dominante, que controla, no presente, o modo de ver e de representar o passado e, desse modo, tem o poder de definir o que deve ser incluído e excluído, tornado visível ou invisível, narrado ou silenciado. A memória da escrita da história apresenta-se, assim, como o relato das disputas pelo controle da leitura do passado, pois, afinal, quem tem esse controle estabelece a visão do presente e respectiva orientação.
Na história da cidadania brasileira, o direito de votar e ser votado/a foi significado como o primeiro passo, o requisito jurídico da primeira etapa de um processo em direção à construção de uma sociedade democrática. Votar e ser votado/a são direitos constitucionalmente assegurados atualmente na sociedade brasileira a todas as pessoas, de ambos os sexos, maiores de 16 anos, alfabetizadas ou não. Votar e ser votado/a, vistos, portanto, como verbos de localização, o ato gestual primeiro que confere à/ao votante a identidade comum de cidadã/cidadão, que estabelece seu reconhecimento e autoreconhecimento como integrante da nação brasileira, essa comunidade imaginada, tal como a define Benedict Anderson (2008). Votar e ser votado/a, como verbos de identificação, pois, nas respectivas ações, os seus sujeitos, a/o votante e a/o votada/o, inscrevem-se como cidadãs/cidadãos com direitos aos seus espaços de fala e lugares  de sujeitos históricos, independentemente de sua condição de sexo/gênero, classe, raça, etnia, estado civil, ocupação, escolaridade, religião e região. 
Não por acaso, no exercício desse direito, no Brasil, as mulheres estiveram dele excluídas, de 1824, data de nossa primeira Constituição, até o novo Código Eleitoral de 1932, ou seja, por mais de um século. Nessa duração, desconsideramos a experiência colonial, quando, reconhecidamente, as mulheres não participavam dos processos de escolha, direta ou indireta, dos representantes dos colonos junto às Câmaras de Vereança, órgão da administração colonial, reservado aos “homens bons” das vilas e cidades. Mesmo sendo “mulheres boas”, isto é, detentoras das qualidades exigidas àqueles – honestidade, honradez, zelo com a coisa pública, proprietária de bens, capacidade administrativa, fidelidade ao Rei e à Coroa Portuguesa – , ficavam de fora das referidas eleições, ato cívico e político de domínio masculino.
“Ficar de fora” explicita a perversa divisão assimétrica do sistema sexo/gênero – mulheres para lá, homens para cá – praticada na sociedade brasileira desde o século XVI, com desdobramentos até os dias atuais, não obstante a política de igualdade de gênero implementada pelos governos, nos níveis federal, estadual e municipal. Trata-se de divisão que explicita a perversa lógica da partilha desigual de gênero, ordenadora das sociedades ocidentais, inclusa a brasileira, ao conferir ao feminino uma posição de inferioridade em relação ao masculino. Embora compreenda um construto social, cultural, lingüístico e histórico, a representação de gênero encontra-se, porém, naturalizada no imaginário social como anterior à história, isto é, como algo inerente à ordem das coisas, à uma suposta “essência” feminina e masculina, à natureza imutável do sexo biológico, responsável pelas características definidas como inatas a cada um dos gêneros.
Nesse modo de ver, representar e significar as mulheres e o feminino, historicamente produzido e naturalizado por práticas cotidianas sexistas operantes na estruturação do saber e das relações sociais em nossa sociedade, as mulheres foram definidas como seres inferiores, desprovidos da capacidade de atuar no espaço da cultura e da política. Afinal, a lógica ordenadora da experiência colonial, tributária da tradição cristã e de sua visão androcêntrica, patriarcal e heterossexual de leitura do mundo foi reafirmada na organização da sociedade brasileira  também após a independência do país, no Império e na República.
Estabelecer, na partilha desigual, “homens para cá”, ou seja, o espaço público e político como de domínio masculino, e “mulheres para lá”, ou seja, espaço privado e despolitizado como de domínio feminino, é construção atravessada pela lógica de gênero, essa representação social, esse saber que, como define Joan Scott (1990:12), confere “significados diferentes para as diferenças corporais”, estabelecendo o masculino como superior em relação ao feminino. Representação, essa, que se encontra veiculada e naturalizada graças ao funcionamento de complexas tecnologias sociais – leis, discursos, escola, instituições, cinema, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas, bem como práticas cotidianas – produtoras/reprodutoras dos efeitos de gênero, isto é, de masculino e feminino nos corpos, comportamentos e relações sociais (LAURETIS, 1994: 208).
A divisão público/privado é construto historicamente datado e localizado nas sociedades ocidentais modernas oitocentistas, não sendo a brasileira exceção. Nesta, sua primeira constituição, de 1824, excluiu as mulheres do direito ao voto. Com efeito, independentemente de sua condição de classe, idade, raça, etnia, nacionalidade, condição civil, escolaridade, religião e ocupação, elas compunham, junto aos escravos e escravas e aos homens livres e sem posses, a desclassificada categoria dos não-cidadãos da sociedade brasileira, embora já representassem, à época, praticamente a metade da população do país. Trata-se de discriminação fundamentada naquela partilha, como lucidamente assinala Michelle Perrot, ao refletir sobre idêntica prática na sociedade francesa do mesmo período:

No espaço público, aquele da cidade, homens e mulheres situam-se nas duas extremidades da escala de valores. Opõem-se como o dia e a noite. Investido de uma função oficial, o homem público desempenha um papel importante e reconhecido. Mais ou menos célebre, participa do poder (...). Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher – também se diz “a rapariga” – pública é uma “criatura”, mulher comum que pertence a todos. (PERROT, 1998: 57)

Da exclusão do “direito a ter direitos” dos textos constitucionais de 1824 e de 1891, ao Código Eleitoral de 1932, quando finalmente as mulheres tiveram formal e legalmente reconhecido pela União seu direito de votar e de serem votadas, um longo percurso foi traçado, sempre tensionado e bastante nuançado, com avanços e recuos. Trata-se de percurso desenhado com diversas tintas, ruídos e cores, com múltiplas práticas de resistência e também de submissão, de confronto e também de negociação, de anuências e também de recusas, de inclusões e também de exclusões, de afirmações e também de negações, de agenciamentos e também de assujeitamentos. Percurso, esse, constituído na e pela história e, como tal, atravessado por continuidades e descontinuidades. Processado, portanto, não de forma linear e contínua em direção a um suposto estágio final de progresso e civilização, consoante a perspectiva evolucionista do século XIX, ou rumo ao sonhado estágio final do comunismo, segundo a orientação etapista do marxismo, perspectiva que alimentou projetos socialistas do século XIX. Enfim, um percurso balizado pelos dois dos principais modos de ver e de dar a ler a experiência histórica brasileira nos séculos XIX e XX, respectivamente.
Tal linearidade é negada tanto pela emergência do novo como pela retomada do que se julgava superado, haja vista o crescimento da violência contra as mulheres na contemporaneidade brasileira, num contexto em que os direitos das mulheres encontram-se constitucionalmente prescritos, regulamentados e objetos de políticas públicas. Conforme o Mapa da Violência no Brasil, de 2010, no período de 1997 e 2007, um total de 41.532 mulheres morreram vítimas da violência de gênero, o chamado feminicídio; um índice assustador de 4,2 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil habitantes; ou seja, em 10 anos, dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil.
Observa-se, assim, a permanência de práticas de violência de gênero, como assassinatos, estupros, assédio sexual, agressões físicas, psicológicas e morais, nos âmbitos do privado e do público, não obstante as conquistas no que tange à igualdade de direitos entre os sexos, traduzida na Constituição de 1988. Igualdade, essa, legalmente assegurada e implementada por meio de ações que envolvem desde a legislação regulamentar às políticas públicas, aos programas sociais e culturais, aos contratos civis e comerciais, às organizações político-partidárias, às relações de trabalho, do acesso aos bens e serviços, dentre outras.
Trata-se de permanência reveladora da lógica sexista ainda operante em nossas relações sociais cotidianas e que respondem, inclusive, pelo desconhecimento das vítimas dos abusos físicos, psicológicos e morais, principalmente na intimidade de seus lares, quanto ao assegurado na Lei Maria da Penha. Com efeito, não obstante essa grande conquista, a dependência financeira e afetiva, ao lado da desinformação acerca dos próprios direitos, continuam alimentando o círculo de violência contra as mulheres por parte de seus maridos/amantes/namorados/companheiros/familiares. Segundo a Defensoria Pública do DF, dentre as maiores dificuldades de plena efetivação da Lei Maria da Penha, destacam-se a falta de informação e o medo da acareação e das conseqüências sociais e familiares de um processo judicial. E não sem razão. Afinal, revelar, na justiça, detalhes da vida íntima é, sem dúvida, constrangedor. Como bem avalia Olgamir Ferreira, da Secretaria da Mulher do DF, o aparato do judiciário é “uma estrutura machista. A vítima se depara com um homem togado, representante do poder, que irá deliberar sobre seu futuro.” (Correio Braziliense, 29/09/2012)
Não há como ignorar que, no que tange aos direitos das mulheres e seu acesso à cidadania no Brasil, avanços foram acompanhados de recuos também no âmbito do arcabouço jurídico-institucional que fundamenta as relações entre sociedade e Estado. Cabe lembrar, por exemplo, os recuos quanto ao estado de direito, não apenas nos anos de chumbo dos governos militares de 1964-1984, que atingiram indistintamente mulheres e homens, como também em 1937. Se o ano de 1937 configurava-se como um momento promissor para a aprovação das propostas de criação do Estatuto da Mulher e do Departamento Nacional da Mulher, apresentadas pela deputada Berta Lutz como representante da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, foi, porém, interrompido com o fechamento do Legislativo e implantação do Estado Novo, por ato do presidente Getúlio Vargas (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 232). Quanto ao contexto de 1964-1984, da ditadura militar, diferentemente das européias e norte-americanas que viviam nessa mesma época sob regimes democráticos, as brasileiras viram seus direitos conquistados cerceados e/ou sequestrados pelos governos dos generais. Assim, enquanto na França, por exemplo, as feministas combatiam o patriarcado e defendiam a liberdade sexual,  por aqui, o machismo era apenas um dos “inimigos” a ser combatidos, já que na pauta das reivindicações a prioridade foi a abertura política.
Enfim, entre conquistas, recuos e fracassos, foram experiências importantes e indispensáveis à construção da cidadania brasileira, efetivadas em meio a muita luta, em um campo tensionado e presidido por discriminações de sexo/gênero, além de outras que presidem as relações em nossa sociedade ainda atravessada por vários tipos de desigualdades. Individual e coletivamente, as mulheres brasileiras protagonizaram combates e enfrentamentos, configurando o que a historiadora Joan Scott denomina “movimento da história das mulheres” (SCOTT, 1992:64). Dele fazem parte os feminismos anteriores e posteriores a 1975, considerados pelas mudanças operadas, como o “mais importante movimento social do século XX”, como o designa o historiador Eric Hobsbawm, desobrigando-se, contudo, de escrever uma linha sequer sobre o assunto (HOBSBAWM, 1995).
Com suas diferentes bandeiras, programas e estratégias de luta, esses movimentos sociais e políticos foram até há pouco tempo praticamente ignorados pela comunidade de historiadores. Apenas recentemente tornaram-se objeto de estudos de uma área específica do campo historiográfico, reconhecida como História das Mulheres. Assim mesmo, trata-se de temática ainda vista com reservas, resistências e hierarquizações, reproduzindo preconceitos que informam as relações sociais cotidianas brasileiras (MUNIZ, 2010). Feminista, afinal, ainda é palavra carregada preconceitos, sua conotação pejorativa afugenta gregos e troianas, ou seja, não apenas historiadores e historiadoras, mas, sobretudo, muitas mulheres que se sentem ameaçadas diante do termo, com receio de estarem a ele associadas, com medo do feminino que as habita ser assassinado justamente por quem o defende, as feministas. Não há como não deixar de atentar para o fato de como as representações são persistentes e poderosas em sua força instauradora e naturalizadora de imagens, sentidos e preconceitos.
Não se pode negar que, no Brasil, a igualdade de direitos entre os sexos, no que concerne à educação e ao voto – as primeiras conquistas – , é resultado das lutas feministas do final do século XIX e início do XX, a chamada “primeira onda”, identificada com a agenda das sufragistas. A luta de nossas precursoras, revigorada pelas manifestações sociais e políticas do advento da República, foi vitoriosa em 1932, com a aprovação do novo Código Eleitoral que assegurou às brasileiras o direito de votar e de serem eleitas. A incorporação desse princípio à Constituição ocorreu em 1934, quando esta foi então votada e promulgada. Trata-se de uma conquista relativamente tardia em relação às neozelandesas (1893), ás americanas (1920), às inglesas (1928), às finlandesas (1906), às norueguesas (1913), mas antes das francesas (1944), das italianas (1948), das suiças (1981) e das portuguesas (1974).
Foi uma luta travada em meio a um clima de forte oposição às reivindicações das mulheres, traduzida em preconceituosas críticas às demandas feministas, veiculadas na imprensa, em peças teatrais, crônicas, caricaturas, e centrada em ridicularizar o movimento sufragista, como bem lembra Rachel Soihet (2012: 219). Embora a campanha sufragista não tenha tornado-se aqui um movimento de massa, esta se caracterizou pela sua excelente organização, o que fez do Brasil o segundo país da América Latina, depois do Equador, a garantir o direito de voto às mulheres. Como a maioria das líderes feministas sufragistas originava-se das classes privilegiadas, recebera uma formação escolar diferenciada e relacionava-se com figuras de projeção nacional, elas souberam aproveitar-se disso para obter simpatias para a causa. Com Vargas no poder e seu projeto político de legitimação e de modernização do seu governo, o sonho do voto feminino se concretizou (Idem, ibidem).
Não por acaso, algumas mulheres envolvidas, direta ou indiretamente, com essa luta ganharam recentemente visibilidade nas narrativas sobre o evento, integrando o pantheon das “mulheres célebres”, “brasileiras ilustres”, “mulheres excepcionais”. Mulheres atuantes – como Celina Guimarães Viana, primeira eleitora do Brasil, votante em 1927; Alzira Soriano, primeira prefeita da América Latina, eleita em 1928; Antonieta de Barros, primeira deputada negra do Brasil, eleita em 1934; Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal da América Latina, eleita em 1933; Maria do Céu Pereira Fernandes, primeira deputada estadual do Rio Grande do Norte, eleita em 1934; Olga Benário, ativista política da Aliança Nacional Libertadora, movimento antifascista e antiimperialista, com atuação nos anos 1935-1937; Bertha Lutz, líder feminista, sufragista, integrante do grupo criador da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, em 1919, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – , foram algumas das protagonistas selecionadas como representativas da história e da memória da participação das mulheres na construção da cidadania no Brasil. Sua presença e atuação nessa construção ganharam visibilidade graças ao projeto de incorporação das mulheres no discurso historiográfico.
Observa-se, assim, que a aprovação da constitucionalidade do direito de voto para as mulheres não foi iniciativa e nem mesmo concessão do governo Getúlio Vargas, como veiculado e significado em diversas narrativas históricas e sob esse modo de ver apropriado e naturalizado no senso comum. A conquista desse direito foi resultado de insistentes mobilizações dos movimentos feministas. Estes, desde o final do século XIX, empreenderam ações que envolveram exaustivas campanhas, intensas disputas, inesgotáveis negociações, intrincadas articulações entre as próprias integrantes e entre estas e as lideranças políticas, associações de classe, sindicatos, partidos políticos, intelectuais, congressistas e governantes, em prol de seus programas de luta: educação e voto para as mulheres (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 230-235).
Apesar de ter sido um movimento articulado às elites, não se pode dizer que não tenha se empenhado também em outras causas democráticas. Como bem avalia Rachel Soihet:

várias das militantes desse movimento estavam também preocupadas em garantir conquistas para os trabalhadores, particularmente, às mulheres das classes trabalhadoras. Entretanto, isto não foi prioridade da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Além disso, havia uma certa distância, em termos de interesses e visão de mundo, entre as militantes dessa entidade – em sua maioria, profissionais liberais ou membros da burguesia – e as mulheres das classes trabalhadoras, mais preocupadas com a questão da sobrevivência do que com o problema específico de votar. (SOIHET, 2012: 226)

É claro que seria impensável, à época, o direito ao voto, à cidadania política, sem o acesso aos bancos escolares. No final do século XIX, o sexo feminino representava apenas cerca de menos de 30% da totalidade da população escolar do país, nível instrução primária. Esse quantitativo já representava um avanço, considerando-se que no início do mesmo século apenas cerca de menos de 8% das meninas em idade escolar frequentavam as escolas femininas de instrução pública do Império (MUNIZ, 2003). Não por acaso, o acesso à educação formal foi uma das agendas das “primeira onda” dos movimentos feministas, ao lado do direito ao voto e ao trabalho. O direito à educação foi reivindicação árdua e insistentemente defendida por várias mulheres desde o século XIX e revela-nos mais uma forma de sua participação política. As mulheres fizeram uso da escrita como arma política para defender seus direitos, o principal deles, o de ter acesso à educação. Escrever para “ter direito a ter direitos”, inclusive o de escrever e ter lugar de fala no espaço da cultura, definido como de domínio masculino.
Campanhas na imprensa em defesa da escolarização das meninas, particularmente jornais produzidos por mulheres nas principais províncias do Império, respondem assim pela expansão, lenta e gradual, do atendimento escolar feminino. Conforme assinala Moraes (2003: 506), trata-se de imprensa feita por mulheres, e não somente para as mulheres, em que se destacam os jornais O sexo feminino, de Francisca Senhorinha da Motta Diniz, editado em Minas Gerais, em 1875; O Domingo, de 1874, de Violante de Bivar e Vellasco, no Rio de Janeiro; Mysotis, de Maria Heraclia, em Recife, 1875; O Echo das Damas, de 1879, de Amélia Carolina da Silva Couto, no Rio de Janeiro, dentre os principais periódicos da época. Além das editoras, ganharam visibilidade na imprensa autoras como os de Nísia Floresta, Júlia Almeida, Narcisa Amália, dentre várias outras mulheres com atuação expressiva no movimento primeiro de defesa do direito de educação e de voto para as mulheres.
Com efeito, na campanha, veiculada na imprensa, foi ressaltada a importância da emancipação e da escolarização femininas para o progresso do país que ainda ensaiava seus primeiros passos em direção à modernização e à cidadania. Francisca Diniz, por exemplo, uma das primeiras feministas brasileiras, professora em Campanha/Minas Gerais, no século XIX, foi vigorosa defensora da emancipação feminina e da exigência de se cumprir o direito constitucional de acesso das meninas/mulheres aos bancos escolares para que tal projeto se efetivasse. Publicou o jornal O sexo feminino (1873), veículo criado para divulgação de suas idéias e propostas, bem como a cartilha de campanha Mulheres sem medo do poder, em que defende os direitos à instrução e ao voto feminino (SILVA, NASCIMENTO e ZICA, 2010: 232-233).
O acesso das meninas aos bancos escolares no século XIX e primeiras décadas do XX foi, porém, diferenciado e desigual em relação aos meninos, pois a formação ali recebida reafirmava, para aquelas, o destino ligado ao ventre, à maternidade; ou seja, a preparação para se tornarem boas donas de casas, zelosas mães e dedicadas esposas. Já para os meninos, a formação escolar oferecida possibilitava-lhes o ingresso no mundo do trabalho e da política. Currículos diferenciados segundo o sistema sexo/gênero – ensino de ciências e humanidades para os meninos e “ler, escrever e contar” e trabalhos “d’agulha” para as meninas – produziam/reproduziam a lógica sexista operante na estruturação da sociedade brasileira da época, bem como de posteriores. Apenas com a ampliação dos espaços de formação escolar e de capacitação profissional – cursos secundários, sistema de co-educação escolar mista, criação das Universidades e particularmente das faculdades de filosofia, a partir de 1934 –, é que, efetivamente, observa-se um redirecionamento curricular no sentido de eliminar o sexismo na educação. Não por acaso, o combate a esse tipo de sexismo constituiu uma das pautas da agenda política da “segunda onda” dos movimentos feministas (1970-2010).
Cumpre lembrar que as restrições impostas por currículos sexualmente diferenciados não impediram, porém, o acesso das mulheres ao ensino superior, ainda no século XIX: foi o caso das pioneiras Maria Augusta Generosa Estrella, graduada em 1882, em Medicina, nos Estados Unidos e Rita Lobato, graduada em Medicina, na Bahia, em 1887. Tal acesso foi, sem dúvida, demorado em relação aos meninos: setenta e nove anos após a fundação da primeira instituição de ensino superior no Brasil e oito anos após a Lei Leôncio de Carvalho que garantiu às brasileiras ingresso no ensino superior no Brasil. Acrescente-se que nem sempre a defesa do acesso e progressão das mulheres à educação forma foi sustentada por razões emancipatórias para além da função doméstico-maternal. Durante os séculos XIX e XX, e mesmo no início do XXI, tem sido ainda apresentada a justificativa de que se deve investir na educação das mulheres porque “mulheres educadas são melhores mães” (ROSEMBERG, 2012: 330). Na realimentação desse papel tradicional, a evidência do “dispositivo amoroso”, de que fala Tânia Swain, segundo o qual

O amor está para as mulheres o que o sexo está para os homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento identitário. O dispositivo amoroso inverte e constrói corpos-em-mulher, prontos a se sacrificar, a viver no esquecimento de si pelo amor de outro. As profissões ditas femininas partilham estas características: enfermeira, professora primária, doméstica, babá, etc. (SWAIN, 2008; 297)

Contemporaneamente, as mulheres são maioria no ensino superior e médio no Brasil e em quase metade dos países do Ocidente. Obtém melhores notas que os homens em geral, repetem menos de ano, tendem a ter desempenho excepcional em língua e interpretação de texto e já invadem antigos redutos do sexo masculino, como a matemática e as ciências, segundo Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, de 2010. O resultado dessa “revolução educacional” permitiu às mulheres avançar a passos largos no mercado de trabalho onde representam 64% de sua força, quase o dobro dos 39% observados em 1980. Todavia, apesar dos visíveis avanços, elas ainda ganham menos que os homens na mesma função e ocupam poucos cargos altos nos governos e de chefias nas empresas privadas.
Além disso, embora representem mais da metade do eleitorado brasileiro, tem influência muito limitada na política, não conseguiram o ingresso nos partidos políticos e no parlamento, em termos numéricos, tal como ocorreu com os homens: representam apenas 15,31% do congresso, sendo que somente 9% delas estão entre os 100 parlamentares mais influentes do Senado e da Câmara dos Deputados, segundo dados de 2011 do Departamento Intersindical de Assessores Parlamentares (DIAPS). Nesses dados, as evidências de que a desigualdade de gênero ainda permanece informando as práticas sociais cotidianas não apenas no âmbito do privado, mas, sobretudo, no espaço do mundo do trabalho remunerado, da política e da cultura. Os dados também apontam para os avanços e mudanças ocorridas em nossa sociedade em razão, sobretudo, das lutas feministas em defesa da promoção das mulheres como cidadãs.
Com efeito, os feminismos contemporâneos, pós-1975, respondem pela ampliação da cidadania no Brasil, em suas lutas pela redemocratização do país (anos 1970/1980) e também por igualdade, justiça, educação, creches, saúde, reprodução, sexualidade, descriminalização do aborto, combate à violência doméstica e representação política. O ano de 1975, Ano Internacional da Mulher, é reconhecido como marco de um revigoramento dos movimentos feministas e/ou das mulheres aqui no Brasil – e também fora dele – com seu programa em prol de uma sociedade efetivamente cidadã, isto é, uma sociedade onde a igualdade entre os sexos e também o respeito às diferenças encontram-se assegurados. Sob o lema “Diferentes, mas não desiguais”, a segunda onda feminista no Brasil, não obstante sua diversidade cultural, racial, social, política e ideológica, encontra-se mobilizada em torno do projeto comum de efetivação e ampliação dos direitos das mulheres, ao combater o uso político da diferença para instaurar desigualdades e, sobretudo, lutar pela transformação das relações humanas.
Trata-se de projeto político de mudanças com vistas ao reordenamento da sociedade sob outros termos e bases, ou seja, fora da lógica da supremacia masculina. Na pluralidade e diversidade de sua composição – são mais de 1000 grupos espalhados pelo país, atuando em diferentes setores: partidos políticos, estrutura do Estado, sindicatos, grupos autônomos, organizações governamentais e não-governamentais, associações de moradores, instâncias de controle social, universidades (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 235) – esse movimento da “segunda onda” aglutina-se em torno do propósito e do esforço comum de construção de uma sociedade cidadã, que exige eliminar toda e qualquer tipo de violência contra as mulheres, de modo a assegurar-lhes, enfim, seus lugares nos espaços de poder e decisão.
 Tão revolucionários quanto os movimentos da “primeira onda” e sua luta em prol dos direitos das mulheres quanto à educação, voto e trabalho – os feminismos da “segunda onda” investiram na agenda da emancipação das mulheres ao fazer a defesa de seus espaços no mundo profissional e pessoal e, sobretudo, na sexualidade. A abertura política no final dos anos 1970 e a redemocratização do país nos anos 1980, as possibilidades abertas quanto a um maior diálogo com as feministas francesas, inglesas e americanas, o uso da pílula anticoncepcional e o acesso a tecnologias reprodutivas são algumas das mudanças inscritas no movimento dessa “segunda onda”, experiência mediante a qual “as mulheres se tornaram mais conscientes de seu papel como sujeitos políticos de direitos, com plena e total cidadania”, como bem avalia Tânia Navarro Swain (Jornal da Comunidade, 29/09/2012).
Todavia, continuando com a historiadora, tal conscientização confronta-se com um “cotidiano ainda atravessado por práticas sexistas, explícitas ou não, dentre elas, a violência material e simbólica, o assédio, a discriminação no trabalho, a diferença salarial, que mostram que há muito ainda a ser feito.” (Idem, ibidem). Com efeito: há muito ainda a ser feito. Nesse fazer, não podemos e nem devemos abrir mão da perspectiva libertária dos feminismos para pensar o mundo e, sobretudo, pensar sua transformação, pois, afinal, como nos ensina Foucault, “já que as coisas existentes foram feitas, podem, com a condição que se saiba como foram feitas, serem desfeitas.” (FOUCAULT, 1994: 449). Desfaze-las e faze-las nos termos propostos pelos feminismos, de modo a transformar a libertação em efetiva liberdade para todos nós, que habitamos o planeta Terra, permanece sendo nosso desafio e nossa tarefa incontornável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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